quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Árabes dizimam população negra no Sudão

Importante matéria publicada no jornal Folha de SP neste sábado, dia 8 de outubro de 2005 - a contagem de mortos apenas tinha começado...

"Limpeza" étnica, promovida com apoio governamental, já matou mais de 400 mil pessoas e expulsou 2 milhões

JOHANN HARI
DO "INDEPENDENT" (jornal inglês)

Finalmente, o genocídio no oeste do Sudão está quase terminado. Há um problema, porém: o genocídio está chegando ao fim apenas porque não restam negros para matar ou submeter à limpeza étnica. No esforço para "limpar" o oeste do país de "zurgas" -termo que pode ser traduzido como "crioulos"-, o governo da Frente Islâmica Nacional já exterminou mais de 400 mil deles e expulsou outros 2 milhões de suas casas.

As milícias racistas governamentais, conhecidas como Janjaweed, adorariam continuar a matar e devastar, mas os povoados negros já foram todos queimados, e todas as mulheres negras já foram estupradas, inseminadas com "semente árabe" para "destruir sua raça de dentro para fora". O primeiro genocídio do século 21 transcorreu sem transtornos, e os genocidas venceram.

Alguns dos sobreviventes acabaram chegando ao solo britânico. Adam Hussein hoje vive em Doncaster. Um dia qualquer no ano passado, ele estava no quintal de sua casa, com seu tio e sua irmã, quando "de repente vimos um avião passar pela cidade e começar a jogar bombas. Depois de alguns minutos, vimos chegar os Janjaweed, que atacaram minha irmã e meu tio, e... eles morreram.

Eu os vi agarrando outras meninas e moças e estuprando-as." Adam foi posto na prisão pelos Janjaweed, como parte do "pogrom". Ele só conseguiu fugir por acaso, e, com muita sorte, conseguiu embarcar num navio que acabou chegando a Londres.

Represália

A responsabilidade principal pelo genocídio cabe ao governo da Frente Islâmica Nacional, em Cartum. Durante décadas o governo tratou Darfur como nada além de uma fonte de leais recrutas muçulmanos para combater na guerra civil movida pelo governo contra os cristãos do sul do país. Os "zurgas" serviam para morrer às centenas de milhares, travando uma guerra inútil, mas não eram bons o suficiente para fazer parte do governo nem para que se gastasse dinheiro público com eles.

Quando, em 2003, eles encenaram uma pequena revolta contra décadas de tratamento desse tipo, Cartum reagiu com ferocidade estarrecedora. O governo soltou as milícias Janjaweed -grupos de homens a cavalo, armados com facões e metralhadoras- e apoiou os ataques delas com helicópteros de guerra.

À medida que a violência foi se tornando mais e mais selvagem, a linha dura de Cartum passou a enxergar o que estava acontecendo como oportunidade.

Darfur fica sobre a fronteira geográfica que separa a África árabe da África negra, e, desde a década de 1980, os islâmicos de Cartum anseiam por "arabizar por completo nossa parte da África" e expulsar do país a população negra, "inferior". Essa era sua chance. Eles fizeram com que a repressão de uma rebelião local fosse pouco a pouco derrapando, transformando-se em genocídio.

As milícias adorariam continuar a matar, mas os povoados negros já foram todos queimados

Ficou claro desde muito cedo que se tratava de uma reprise de Ruanda. Romeo Dallaire foi o chefe da força de manutenção da paz da ONU em Ruanda que se esforçou desesperadamente -e em vão- para convencer o mundo a intervir, só para ser obrigado a assistir, impotente, a centenas de milhares de pessoas sendo massacradas sistematicamente. Ele descreveu Darfur como "Ruanda em câmera lenta".

Tony Blair, em 2001, prometeu que, "se Ruanda voltar a acontecer, teremos a responsabilidade moral de agir". Mas, confrontado com isso, ele não ofereceu nada além de uma folha de figueira moral: propôs que uma força da União Africana (UA) fosse enviada para monitorar um cessar-fogo em Darfur. Mas a UA não possui a capacidade física de pacificar nem sequer Tunbridge Wells, o que dirá Darfur. Ela enviou 3.000 homens apenas para monitorar uma área do tamanho da França.

Gerard Prunier, especialista em Darfur, diz que a força da AU consiste de "milhares de pequenos Dallaires negros que não podem fazer mais do que assistir à matança, que segue adiante. Enviá-la para Darfur foi a maneira que o mundo encontrou de não fazer nada, sem admitir que não está fazendo nada".

Esse fato foi ilustrado com clareza na semana passada, quando um campo de refugiados supostamente protegido por tropas da UA foi invadido por milicianos Janjaweed que massacraram 37 pessoas sem que um único tiro fosse disparado contra eles. Foi a mini-Srbrenica de Darfur.

Descontrolados

Num primeiro momento, a administração Bush falou sobre Darfur em tom contundente, tendo sido um dos primeiros governos a falarem publicamente em genocídio. Ao mesmo tempo, porém, como revelou o "Los Angeles Times", enviou aviões a Cartum para conduzir até Washington o chefe da inteligência sudanesa, Salan Abdallah Gosh, justamente a pessoa que supervisionava os massacres.

Gosh foi recebido em reuniões secretas em que foi saudado como "aliado estreito" pelo fato de ter compartilhado com os EUA informações sobre a Al Qaeda e por ter tomado medidas no sentido de abrir os campos petrolíferos do Sudão para grandes empresas americanas.

Bem, afinal, que importância tem um pouquinho de genocídio quando se está entre amigos? O Departamento de Estado já começou até a difundir a posição de propaganda sudanesa segundo a qual os Janjaweed são "tribais descontrolados e selvagens" que não estão sob o comando de Cartum. Mas quantos tribais descontrolados contam com helicópteros militares com a insígnia do Exército sudanês?

A lista de pessoas que traíram a população de Darfur não pára por aí. Tanto a China quanto a França possuem interesses petrolíferos no Sudão, razão pela qual disseram a Kofi Annan que vetarão qualquer tentativa do Conselho de Segurança de sequer impor sanções ao Sudão. No auge dos massacres em Darfur, a própria ONU indicou o governo sudanês para ser membro da Comissão de Direitos Humanos da ONU por um prazo de três anos.

Os "jihadistas" que afirmam estar combatendo em prol dos muçulmanos de toda parte, da Palestina à Tchetchênia e o Iraque, até agora não disseram nada para condenar o massacre de 400 mil muçulmanos inocentes em Darfur. Pelo contrário, eles apóiam o massacre, porque o governo de Cartum impõe a lei da sharia em toda parte por onde vai e, entre 1991 e 1996, chegou a convidar Osama bin Laden, o herói deles, a se instalar no país.

Grandes empresas, entre elas a Siemens e a Alcatel, continuam a operar e a pagar impostos no Sudão, mesmo cientes de que o dinheiro está sendo canalizado para assassinatos em massa.

O holocausto de Darfur constitui uma demonstração cabal e irrefutável do quão pouco as instituições mais poderosas do mundo são motivadas por considerações de moralidade humana fundamental. Confrontadas com um caso inequívoco do crime mais hediondo de todos, elas vêm conspirando para continuar a trabalhar com os assassinos, como se o genocídio não passasse de uma inconveniência de pouca monta.

Tradução de Clara Allain

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