João Pereira Coutinho, colunista da Folha SP
O presidente Lula prepara a sua despedida e, em gesto final, resolveu manifestar apoio a um Estado palestino nas fronteiras pré-1967.
Foi o dilúvio: choveram críticas e cartas contra a atitude de Lula. E alguns membros da comunidade judaica manifestaram o seu "repúdio" ante a "traição" do presidente.
Isso faz sentido? Não faz. Desde 1988 que mais de 100 países já reconheceram um Estado palestino nas fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias. É um gesto simbólico, que pressiona para uma solução prática: a existência de dois Estados, lado a lado, com fronteiras e soberanias reconhecidas. Aliás, essa não é apenas uma solução prática. É uma solução antiga.
A ideia dos dois Estados, repetida hoje por qualquer jornalista ou diplomata, tem sido proposta sucessivamente desde que a Liga das Nações, nos escombros da I Guerra Mundial, determinou o Mandato Britânico para a Palestina pós-otomana.
Assim foi em 1919. Assim foi em 1937, quando a Comissão Peel, enviada ao terreno para apurar as causas da violência entre árabes e judeus, recomendou a partição do território em dois Estados. E assim foi em 1947, por obra e graça das Nações Unidas.
O mais irônico dessa história - digo "irônico" para não escrever "trágico"-- é que a "solução dos dois Estados" sempre foi aceite por Israel, mas recusada pelos árabes palestinos.
Recusada em 1919.
Recusada em 1937.
Recusada em 1947.
E por aí adiante, até chegarmos a Camp David, dez anos atrás, quando o premiê israelense Ehud Barak ofereceu a Yasser Arafat o que o presidente Lula se limitou a reafirmar agora: um estado palestino em Gaza e na Cisjordânia; e Jerusalém, a velha joia da coroa, partilhada entre os dois povos.
Arafat, sem grande originalidade, fez o mesmo que seus antecessores: recusou.
Podemos olhar Camp David de várias formas. Eu prefiro seguir a opinião geral dos países árabes - repito: árabes - depois do fracasso de Camp David: Arafat cometeu um crime. Um crime sobre os palestinos; um crime sobre os israelenses; e um crime sobre a comunidade internacional, que depois de 2000-2001 nunca mais acreditou na boa fé das lideranças palestinas. O que não admira: em Camp David, Barak estava disposto a tudo.
Mas mesmo depois do fracasso monumental dessas negociações, Ariel Sharon fez o impensável.
Retirou voluntariamente de Gaza em 2005, acreditando que depois da morte de Arafat (em 2004) as novas lideranças palestinas estavam interessadas em mudar o rumo.
Erro.
Nas eleições parlamentares desse mesmo ano, o Hamas vencia em Gaza. Tradução: Gaza passava a ser controlada por uma organização islamita que, na teoria e na prática, não estava e não está interessada em negociar. O seu objetivo é claro: a destruição da "entidade sionista". Uma destruição que não é apenas retórica: com a emergência de um Irã nuclear, o patrono espiritual e material do Hamas (em Gaza) e do Hezbollah (no sul do Líbano), esse objetivo está hoje mais próximo do que nunca.
Moral da história? O presidente Lula pode apoiar os estados palestinos que entender. Mas é importante lembrar três fatos desagradáveis a respeito.
Primeiro, que na história dos “dois estados” a parte que os tem recusado tem sido repetidamente a mesma.
Segundo, que uma hipotética retirada israelense da Cisjordânia ficou adiada "sine die" depois do sucedido em Gaza.
E, terceiro, que não haverá qualquer estado palestino nos territórios pré-1967 quando uma das partes - o Hamas - nem sequer reconhece a existência do Estado de Israel e, mais, continua empenhado na sua destruição incondicional.
O mais irônico do conflito israelense-palestino - e escrevo "irônico" para não escrever "trágico" - é que não é apenas o presidente Lula a desejar um estado palestino. Toda gente deseja isso. Só faltam mesmo os palestinos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário