sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Sobre o senhor dos infernos e eu.



Vê a foto acima?, É a representação do rapto de Prosérpina, até então denominada Core. Esta escultura foi feita a cerca de 400 anos atrás pelo meu escultor preferido Gian Lorenzo Bernini, filho de Pietro Bernini, escultor também. Mas Bernini é o melhor. Seu mármore parece pele humana.

Esta foto me traz duas preferências unidas. Uma é o escultor  napolitano, já rapidamente descrito, a outra é Hades, o invisível, rei dos infernos, na mitologia grega. O mais ignorado dos três irmãos olímpicos, o menos falado, o mais temido.

"O vermelho de suas vestes destaca-se no fundo das trevas de seus domínios. Não ostenta ornatos, porém. Não chora nem sorri. No rosto pálido, esquecido da luz, carrega apenas a cansada indiferença de quem já se acostumou a pronunciar a palavra final".

Assim o senhor invisível é descrito num dos livros que possuo. 

Admiro Hades muito mais dentre todos os irmãos olímpicos. Talvez pela parte que lhe coube na partilha do mundo, não tão digna de ostentação ou pompa como o que ficou destinado a Zeus ou poética e vasta, profunda e azul como o quinhão de Poseidon, mas discreta e terrivelmente fatal, desconhecida e obscura. Hades escolheu governar o reino para onde todos irão no final e, paradoxalmente para onde ninguém anseia ir.
Hades possui uma miríade se seres que o auxiliam, mesmo até fora e antes de sua jurisdição, como as Moiras, poderosas filhas de Nix, e as Queres. Juntamente as divindades vindicatórias, temidas até por Zeus, cujo nome de sua mãe não chega a pronunciar e os homens temem pronunciar-lhes o nome, chamando-as de Eumenidae, as bondosas. Estas divindades, já atuam no momento do nascimento, seja fiando o fio da vida do ser humano, seja tecendo e entrelaçando os fios e criando a história de um homem, deixando à sua escolha as encruzilhadas e caminhos que ele tem para decidir, trilhar e pagar por isso, pois sempre que uma escolha é feita, esta deve ter seu preço pago, seja em labuta, sorriso ou lágrima, bem como ao fim da jornada da vida uma Moira irá lhe cortar o fio com uma tesoura afiada.

Após o fim da jornada terrena uma longa jornada pelo rio do esquecimento, guiada por um barqueiro silencioso e rude. Não são poucas as almas que aproveitam para beber um pouco da água libertadora do Estige, para se livrar da dor.


Hades é, por obrigação de ofício, fatalista, direto, lacônico. Mas também é justo, limpo, correto, equilibrado. Ladeado por 3 juízes, Minos, Éaco e Radamanto, seu juízo final vem após a avaliação minuciosa destes 3 senhores, de forma a solidificar o veredictum finis. após sua fala, nada mais deve ser dito. A maior representação do significado da palavra Final lhe cabe. Aos outros, a alegria pela compensação de uma vida justa ou o choro e ranger de dentes dos condenados em vida ao tártaro, pois Hades não os condena, Hades não decide. Apenas recompensa aos que em vida fizeram por merecer.
Hades é simples.

Compartilho, além da simpatia pela pessoa mítica e sua representação o gosto pelo não ostentar ornatos e a simpatia pela fatalidade na argumentação e no viver. Suspeito que a vocação pela solidão o tenha tornado contemplativo e refinado. 
Suspeito que Hades saiba admirar a beleza. Saiba procurar e encontrar a beleza na vastidão estéril das ravinas do tártaro, na riqueza e exuberância das ravinas do Elísio (sim, pois ele é um deus de imensas riquezas, tanto assim que os romanos o chamavam de Plutão, o rico, detentor  de recursos, e assim o homenageavam, e nesta bajulação intentavam obter seus favores, representados pelas colheitas fartas, pois o submundo alimenta o mundo dos vivos, assim como os deuses alimentam o sonho dos homens). 
Duvido muito que Hades não se deleite com pianos e violinos, com Vivaldi e Einaudi, Bach e Corelli. E outros mais. Compartilho sua simpatia e gosto por cães exóticos.


E Hades, duplamente alimentava os campos, mesmo quando estes repousavam e recuperavam suas forças no inverno e outono, pois sua consorte, a bela Prosérpina ou Perséfone, filha de Ceres, Deméter para os romanos, o torna ligado à deusa dos campos, mesmo que de forma oposta, pois sua felicidade representa a tristeza da vida, a ausência da alegria da pequena Core junto à sua mãe.



Nunca isentando-se de seus compromisso e seus deveres, costumeiramente penosos e difíceis, não há quem imagine que Hades não cumpra seus acertos e mesmo o rei dos infernos, principalmente o rei dos infernos jamais fugiria de suas dívidas. 
O rapto de Prosérpina lhe custou caro e a dívida foi extinta, mas nunca esquecida. Nem por Deméter e nem por ele. O Estige não detém poder sobre o senhor da escuridão. Ele nunca esquece. E enquanto viva, a humanidade também nunca esquece, mesmo que perdoe. Mesmo que se apiede. O homem só pode esquecer depois de morto.

Mesmo conhecendo e admirando a persona mitologica desde os meus 7 anos, mesmo o preferindo a outros seres mitológicos, mesmo o observando em seus possíveis significados metafóricos e contemplando sua figura com panteões e deuses das mais diversas nacionalidades e mesmo assim lhe dando preferência, por motivos que a minha razão poética não pode prescrutar, Hades nunca me favoreceu com uma gota que seja, das águas do rio Stix.

 Muitas lembranças me são presentes há décadas, algumas quase intoleráveis, outras aliviantes. nem o perdão que outorguei-me pelas coisas ruins pelas quais me fizeram passar me livrou de lembrá-las e mesmo que a vingança não me venha à mente posso me livrar delas. É o preço de ter sobrevivido a elas, não devo questionar, mas admito que me reservo o direito de me distanciar de pessoas que assim de má intenção agiram contra mim e os meus.
 É meu direito. É minha prerrogativa enquanto livre. Não me arrependo de ser assim, mesmo que, diferente do rei dos mortos, eu possa chorar por isso. Espero um dia poder derramar algumas lágrimas na Galeria Borghese.



Compartilho com o rei dos infernos esta característica, a de não poder esquecer, e também a de não desejar a presença de quem me fez mal. E eu também não lamento.

É a prerrogativa do rei dos infernos não abrir mão da solidão e da contemplação. É a minha prerrogativa também.O inferno não permite erros, não permite mudanças. O inferno não permite voltar atrás.